Quando pensamos na presença de uma âncora, imaginamos um processo de chegada em algum lugar. Não necessariamente uma chegada permanente, entretanto descer uma âncora e deixá-la depositada no fundo de um lugar é um gesto em que uma expectativa é gerada para o que vem depois. “Âncoras atemporais” é a primeira exposição individual de Cisco Merel no Brasil, que reúne obras de sua produção recente, no entanto, cujos gestos estão assentados em tempos que entrelaçam o passado e o agora.
Para adentrar o universo de Merel, temos que delinear alguns panos de fundo que contribuem para a sua chegada até aqui. Primeiro, entender o Panamá – país de sua origem – como um lugar que possui uma posição geográfica que permitiu o intenso trânsito e conexão entre distintas partes do continente. É um ambiente de cruzamentos: de lá é possível avistar dois diferentes oceanos e uma sorte de intercâmbios entre Norte e Sul da América. Adicionado a isso, há uma presença dos povos originários que habitavam essa região antes dos processos de colonização e extermínio europeu, além de uma população vinda da diáspora africana. Esse aspecto cultural de intersecções pode ser identificado na própria biografia do artista, que carrega consigo ascendências negra, indígena e chinesa.
De tal modo, a produção de Cisco Merel também pode ser decifrada a partir desse lugar dos cruzamentos, que originam uma trajetória e poética artísticas muito particulares quando observadas de perto. Primeiro, uma mais ligada a uma experimentação cromática e formal, inclinada a um certo minimalismo, no entanto, com influências locais – já que Merel investiga as suas origens e se conecta à arquitetura afro-antilhana, à arte e aos ofícios populares (como a prática de pinturas dos ônibus, os chamados Diablos Rojos) para a eleição das cores e do aspecto físico das suas obras. E, depois, por começar a ter no barro uma materialidade de imersão, que permitiu incluir outros elementos conceituais em sua estética nos últimos anos.
O barro aparece na obra do artista não tão somente como um dado matérico, especulando também sobre a sua dinâmica conceitual, histórica e coletiva. Foi na casa da avó, localizada em uma comunidade no interior do Panamá, que Merel entendeu que o fazer do barro perpassa também o desejo de estar junto, de perpetuar aspectos culturais de uma população que continua mantendo a cultura do barro viva e, sobretudo, compreender como é a partir de políticas da solidariedade que o barro contribui para erigir um legado, especialmente quando pensamentos nas culturas tradicionais. Através de um contato direto com a comunidade e num mergulho no entendimento de suas raízes históricas, o artista percebeu como as pessoas convocavam atos de construção comunitária de outras casas utilizando o barro, observando ali um poder agregador nesse exercício e principiando a partir daí a criar obras que costuram uma outra dobra.
Na exposição apresentada na Zielinsky, em São Paulo, Cisco Merel justapõe tanto os trabalhos em pintura quanto obras em que o barro e toda complexidade intrínseca a ele são lançadas em cena. Fabulando sobre elementos formais que surgem a partir da prática da “mola” - um fazer têxtil que utiliza diferentes pedaços de tecido para construção de formas geométricas através de um intricado e complexo jogo de costura – o artista nos aproxima de um universo ligado à natureza e sua espiritualidade.
A organicidade do barro é tramada junto a geometrias fabuladas a partir dos tecidos molas e cujo delineado recorre à aspectos naturais, indiciadas em obras como “Floramiga”, em que uma sinuosa sombra de uma espécie da flora é composta com o barro. E, mesmo em obras em que o aspecto parece ser mais objetivo e sintético, como em “Corrientes”, há ali uma espécie de abstração que se inclina para o que parece ser um intricado correr de um rio. Em obras tridimensionais, Merel novamente joga com os tempos e as tradições artísticas, ao montar esculturas orgânicas que parecem ser peças arqueológicas, realizando um exercício imaginativo sobre arquivos e registros da história.
No ir e vir dos fluxos entre o passado e o agora, Cisco Merel nos oferece em suas obras uma conjectura sobre o tempo. Permite-nos perceber uma temporalidade em que não necessariamente se anda só para frente, na medida em que tece uma complexa teia que articula uma rica imaginação do local de sua origem com aspectos culturais também universais – como é o próprio barro, presente como um dado agregador em toda a história da humanidade. A obra de Merel se mostra profícua pois repousa no afã de baixar, levantar e deslocar as âncoras do tempo.
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Tiago Sant’Ana é curador, artista visual e doutor em Cultura e Sociedade
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CISCO MEREL, 1981, Cidade do Panamá (Vive e trabalha na Cidade do Panamá)
Cisco Merel utiliza a abstração como meio para abordar diversos temas em sua obra, como a arquitetura, os contrastes sociais e a arte popular. Em sua obra busca resgatar as origens dos sistemas construtivos e socioculturais que nos cercam em nosso tempo atual. Merel utiliza a fotografia, a pintura, a escultura e as instalações como ponto de partida para criar um mapa visual e investigativo em cada projeto que desenvolve.
Durante mais de 10 anos colaborou estreitamente com o ateliê do artista Carlos Cruz Diez. Atualmente o artista apresenta a exposição individual “La Puerta del Sol”, com curadoria de Juan Canela, no Museo de Arte Contemporáneo de Panamá; também participou dasexposições coletivas: “Detrás del muro” Bienal de la Habana, Cuba; “Trampolín”, Centro Cultural de España, Panamá; “Circles & Circuits – Pacific Standard Time”, Chinese American Museum, Los Angeles, EUA; “Bienal del Istmo Centroamericano”, Tegucigalpa, Honduras; “The State Of L3 Collective”, Museum Of Contemporary Art, Antuérpia Bélgica. Este ano, Merel representa o Pavilhão do Panamá na 60a Bienal de Veneza.