Desde las entrañas
Existem muitas formas de se estar no mundo, bem como muitos mundos reunidos num só. Segundo Carlos Papa, cineasta e líder espiritual do povo Guarani Mbya, a consciência e a sabedoria estão no escuro, de modo que ao nascer se vem do escuro e ao morrer volta-se para ele. Ao encontro desta percepção de mundo, que se faz em oposição ao pensamento dualista entre luz e sombra, bem e mal, inferno e céu, Adriana Ciudad parte de suas entranhas para imantar seus trabalhos com os saberes que ela encontrou na escuridão.
É justamente neste espaço escuro que a artista estabeleceu um lugar seguro para falar sobre o ato de “dar a luz”, enfatizando que tanto ela como qualquer outra pessoa que passe por tal experiência nunca mais será a mesma. Pois é na intersecção daquilo que é próprio de cada indivíduo, mas que também é percebido em coletivo, que o nascimento pode ser lido tanto como uma experiência de vida, como também de morte. Após se tornar mãe, a artista passa a trabalhar com urucum sobre lençóis, a fim de associar a carga pictórica desta planta sagrada com o sangue do parto, sendo o sangue a “substância mais essencial da vida”, palavreando Ana Mendieta.
O sangue, fluido que escorre mês a mês pela vulva, vem da escuridão uterina para avisar que o corpo está pronto para gerar uma nova vida que, inevitavelmente, ocasionará uma nova morte. Uma vez mais, não se é a mesma pessoa depois de parir, como também não se é a mesma depois de enterrar aquela que lhe pariu. Passando por estas duas experiências, Adriana Ciudad adentra a escuridão para compor três poemas que são interpretados num vídeo por três diferentes personagens que aludem a ideia de filha, mãe e mulher. São personas que compõem as linhas desta trança que dão forma à constituição de sujeito da artista nos dias de hoje, mas que não se restringem necessariamente a ela. Pelo contrário, são poemas que podem ser referenciados a qualquer pessoa que se identifique com as personagens, ou que tenha empatia com elas.
Realizados em colaboração com o cineasta Camilo Prince e interpretado pelas atrizes Mónica Lopera, Marcela Benjumea e Angela Cano, estes vídeos poemas relembram que por mais genuíno que possa ser o amor que se tem pela mãe, bem como a maternidade muitas vezes ser sinônimo de amor incondicional, estas relações amorosas podem também ser permeadas pela raiva, exaustão e dor. Abre-se, então, espaço para outros afetos, muitas vezes guardados a sete chaves em espaços escuros.
Vindo desde as entranhas, nota-se uma coragem na produção artística de Adriana Ciudad; uma coragem que vem das profundezas de suas entranhas e emerge para fora de si enquanto linguagem poética e visual, que com ajuda das plantas de poder nutre seu corpo físico/espiritual para que possa ter a sabedoria de sentir sua própria sombra. Trata-se de uma artista que cria os remédios para suas próprias feridas e concomitante compartilha o caminho da coragem para quem precisar criar seus próprios remédios.
Paula Borghi
Terra Una, janeiro de 2025