Claudio Goulart
Fragmentos da Memória

8 de Junho -
27 de Julho, 2024

Quando a memória falha, começamos a inventar, desvendando outros significados nunca pensados antes.

Claudio Goulart

 

Zielinsky inaugura sua sede em São Paulo apresentando a produção do artista brasileiro Claudio Goulart. A mostra é uma parceria com a Fundação Vera Chaves Barcellos, instituição privada e sem fins lucrativos, que desde 2015 é responsável pela salvaguarda do acervo do artista.

Fragmentos da memória é a segunda individual póstuma de Claudio Goulart no Brasil e a primeira realizada em São Paulo. Com o intuito de resgatar a trajetória e a obra de Goulart, a mostra propõe um olhar atento à produção desse importante artista que, mesmo com projeção internacional, é pouco conhecido no cenário brasileiro. A exposição parte da íntima relação de Goulart com a memória, temática que atravessa sua produção e se faz presente em imagens apropriadas e de referências históricas, bem como em fragmentos de paisagens por onde passou e habitou.

Nascido em Porto Alegre em 1954 e radicado em Amsterdã desde meados dos anos 1970, Goulart emergiu como uma figura proeminente no cenário artístico holandês. Sua presença foi marcada por uma intensa atuação, dedicando-se à concepção e realização de projetos em instituições locais, como a Time Based Arts e a Other Books and So. Além disso, sua obra foi reconhecida internacionalmente, com participações em numerosas exposições individuais e coletivas em diversos países ao redor do mundo. Desde Portugal, Espanha, França, Alemanha, Bélgica, Suíça, Inglaterra e Croácia até destinos como Islândia, Cuba, Costa Rica, México, Japão e China, transcendeu fronteiras geográficas através de seus trabalhos. Colaborando com uma rede diversificada de artistas latino-americanos e europeus, Goulart criou obras em parceria com nomes como Vera Chaves Barcellos, Flavio Pons, Paulo Bruscky, Ulises Carrión, Aart van Barneveld, Raul Marroquin, David Garcia, entre outros.

Por meio de uma variedade de meios expressivos, como fotografias, vídeos, performances, instalações, projetos de arte postal e livros de artista, Goulart embarca em experimentações que despontam como artefatos para rememoração. Suas obras são marcadas por uma poética que critica de forma incisiva a visão eurocêntrica da arte e da sociedade latino-americana. O artista explora, igualmente, as nuances de seu próprio corpo e do corpo do outro, enquanto se movimenta em direção ao campo ampliado das questões sociais, desde os direitos humanos até as discussões sobre guerras, gênero, sexualidade e o desejo homoerótico. Suas imagens provocam reflexão, convidando-nos a ponderar sobre as complexidades da condição humana e da sociedade contemporânea.

No final da década de 1970, o artista realiza a intervenção urbana O.A.N.I. / Objeto Anônimo Não Identificado, cujos registros foram posteriormente exibidos no Espaço N.O., em Porto Alegre. No trabalho, Goulart deixou sua marca de forma clandestina em ruas, prédios e terrenos baldios da capital gaúcha, pixando um símbolo fálico desenhado por ele, denominado “seta-coração”. Este gesto ocorreu em meio ao contexto ditatorial da época, representando uma forma de resistência artística e social.

Os vídeos Lovers e Dialogs dos anos 1980, em parceria com Flavio Pons, exploram a fita como símbolo central, seja amarrando corpos nus em movimentos poéticos ou como elemento condutor de diálogos sem palavras. Souvenir, 30 Snapshots from no man’s land (1982) documenta paisagens de Berlim antes da queda do Muro, destacando o Memorial de Guerra Soviético e questionando o papel dos monumentos na narrativa histórica e nas relações de poder. Em Birds of Paradise with strange fruit (1997), Goulart usa gravuras do século XVIII de William Blake para abordar o colonialismo e o racismo, expondo as feridas da escravidão e a marginalização dos povos negros e indígenas.

Nos anos 2000, o artista produz a série de colagens digitais THE PRINTOUT, que consiste em 35 números que amalgamam uma variedade de elementos: recortes de jornais e revistas, materiais gráficos de propagandas, mapas, objetos, fotografias históricas e retratos de figuras icônicas de Hollywood, juntamente com algumas fotografias autorais. No quinto número da série, Goulart se autorretrata, vestindo um jaleco branco e segurando um estetoscópio, simbolicamente ouvindo seu próprio coração. O jaleco, entreaberto no peito, revela seu corpo magro, destacando os ossos do tórax. A imagem é acompanhada pela frase “listen to your heart”, conferindo uma aura de introspecção e autenticidade. A centralidade do próprio Goulart na obra revela sua abordagem íntima e pessoal sobre sua vivência, oferecendo uma perspectiva subjetiva. O artista sobreviveu a crise da aids, convivendo com HIV/aids por aproximadamente 20 anos. Por meio da imagem, não apenas incita atenção e reflexão ao tema, somos levados a refletir sobre a efemeridade da vida e a proximidade da morte diante de uma doença envolta em estigma. A imagem também se apropria de história e memória, confrontando o apagamento, o silencio e ocultação de corpos enfermos.

Após enfrentar complicações de saúde relacionadas ao HIV/aids, o artista optou por interromper sua própria vida através da eutanásia em 2005, com o apoio de amigos próximos, incluindo Martha Harlew. Em uma entrevista recente, Harlew compartilhou que, após a partida de Goulart, os amigos se reuniam anualmente embaixo de uma árvore próxima a sua residência, no dia de seu aniversário, para celebrar sua vida e legado. Amigos artistas, em particular Harlew e Pons, uniram esforços para preservar o arquivo documental de Goulart, conforme seu desejo expresso em vida. Esse cuidadoso armazenamento de registros e obras revela Goulart como um artista-arquivista, sua ênfase na preservação de seus projetos permitiu a compilação de um acervo significativo que documenta seus quase 30 anos de carreira e contribui para a compreensão de sua trajetória artística.

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Fernanda Soares da Rosa
Curadora e pesquisadora, doutoranda em Artes Visuais (PPGAV-UFRGS)

Claudio Goulart
Fragmentos da Memória

June 8 -
July 27, 2024

When memory fails, we begin to invent, uncovering other meanings never thought of before.

Claudio Goulart

 

Zielinsky inaugurates its new space in São Paulo by presenting the work of Brazilian artist Claudio Goulart. The exhibition is a partnership with the Vera Chaves Barcellos Foundation, a private, non-profit institution that has been responsible for safeguarding the artist’s collection since 2015.

Fragmentos da Memória is the second posthumous solo exhibition of Claudio Goulart in Brazil and the first held in São Paulo. With the aim of rescuing the trajectory and work of Goulart, the exhibition proposes a close look at the production of this important artist who, despite his international projection, is little known in the Brazilian scene. The exhibition delves into Goulart’s intimate relationship with memory, a theme that permeates his work and is present in appropriated images and historical references, as well as in fragments of When memory fails, we begin to invent, uncovering other meanings never thought of before. Claudio Goulart landscapes where he lived and traveled.

Born in Porto Alegre in 1954 and based in Amsterdam since the mid-1970s, Goulart emerged as a prominent figure in the Dutch art scene. His presence was marked by intense activity, dedicating himself to the conception and realization of projects in local institutions, such as Time Based Arts and Other Books and So. Additionally, his work was recognized internationally, with numerous solo and group exhibitions in various countries around the world. From Portugal, Spain, France, Germany, Belgium, Switzerland, England, and Croatia to destinations such as Iceland, Cuba, Costa Rica, Mexico, Japan, and China, his works transcended geographical boundaries. Collaborating with a diverse network of Latin American and European artists, Goulart created works in partnership with names such as Vera Chaves Barcellos, Flavio Pons, Paulo Bruscky, Ulises Carrión, Aart van Barneveld, Raul Marroquin, David Garcia, and others.

Through a variety of expressive media, such as photographs, videos, performances, installations, mail art projects, and artist books, Goulart embarked on experiments that emerged as artifacts for remembrance. His works are marked by a poetics that incisively critiques the Eurocentric view of Latin American art and society. The artist also explores the nuances of his own body and that of others, moving towards the broader field of social issues, from human rights to discussions about wars, gender, sexuality, and homoerotic desire. His images provoke reflection, inviting us to ponder the complexities of the human condition and contemporary society.

In the late 1970s, the artist carried out the urban intervention O.A.N.I. / Unidentified Anonymous Object, whose records were later exhibited at Espaço N.O., in Porto Alegre. In the work, Goulart clandestinely marked streets, buildings, and vacant lots in the capital of Rio Grande do Sul, painting a phallic symbol he designed, called the “heart-arrow.” This gesture occurred amid the dictatorial context of the time, representing a form of artistic and social resistance.

The videos Lovers and Dialogs from the 1980s, in partnership with Flavio Pons, explore tape as a central symbol, either tying naked bodies in poetic movements or as a guiding element of wordless dialogues. Souvenir, 30 Snapshots from no man’s land (1982) documents Berlin landscapes before the fall of the Wall, highlighting the Soviet War Memorial and questioning the role of monuments in historical narrative and power relations. In Birds of Paradise with strange fruit (1997), Goulart uses 18th-century engravings by William Blake to address colonialism and racism, exposing the wounds of slavery and the marginalization of Black and Indigenous peoples.

In the 2000s, the artist produced the digital collage series THE PRINTOUT, consisting of 35 issues that amalgamate a variety of elements: newspaper and magazine clippings, graphic advertising materials, maps, objects, historical photographs, and portraits of iconic Hollywood figures, along with some of his own photographs. In the fifth issue of the series, Goulart self-portrays, wearing a white lab coat and holding a stethoscope, symbolically listening to his own heart. The lab coat, partially open at the chest, reveals his thin body, highlighting the chest bones. The image is accompanied by the phrase “listen to your heart,” giving an aura of introspection and authenticity. Goulart’s centrality in his work reveals his intimate and personal approach to his experiences, offering a subjective perspective. The artist survived the AIDS crisis, living with HIV/AIDS for approximately 20 years. Through the image, not only does he draw attention and reflection to the theme, but we are also led to reflect on the ephemerality of life and the proximity of death in the face of a stigmatized disease. The image also appropriates history and memory, confronting the erasure, silence, and concealment of diseased bodies.

After facing health complications related to HIV/AIDS, the artist chose to end his life through euthanasia in 2005, with the support of close friends, including Martha Harlew. In a recent interview, Harlew shared that after Goulart’s passing, friends gathered annually under a tree near his residence, on his birthday, to celebrate his life and legacy. Artist friends, particularly Harlew and Pons, united efforts to preserve Goulart’s documentary archive, as he had expressed the desire during his lifetime. This careful storage of records and works reveals Goulart as an artist-archivist, and his emphasis on preserving his projects allowed for the compilation of a significant collection that documents his nearly 30-year career and contributes to understanding his artistic trajectory.

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Fernanda Soares da Rosa
Curator and researcher, PhD candidate in Visual Arts (PPGAV-UFRGS)

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